Quem conta um conto, aumenta um ponto... #1


  "A Menina, o Porão e o Silêncio"
 S.M. Oliver

 
 (Conto publicado na Antologia Amor e Morte)

Era primavera e como de costume a menina brincava do lado de fora da casa. E desta vez subira no balanço que ficava pendurado no carvalho que havia no seu quintal. Já era grande o suficiente para fazê-lo sozinha, quatro ou cinco anos.
Sabia subir e se balançar sem a ajuda de ninguém, mas seus pais diziam que não. E naquele dia ela queria realizar esse feito.Depois sairia correndo contar a sua mãe. Mas o balanço ficava de frente para a janela dos pais, e provavelmente ela veria com seus próprios olhos. A menina sorriu ao ver a mãe entrando no quarto. Arrumava a cama, e a menina gritava para que ouvisse: "Olha mamãe, eu consegui". Mas não havia resposta. Apenas um grito. Um homem estava bravo, agarrava sua mãe pelos braços, e em seguida jogou-a na cama, sufocando-a com o travesseiro do papai. Como ela desejava que ele estivesse ali para proteger as duas...Sentiu vontade de gritar, de chamar por ele, mas só o que conseguiu foi observar, enquanto uma lágrima escorria de seu rosto, e ela balançava para frente e para trás... Acordou molhada de suor, e tremia, sentindo um frio incomum. Era só mais um de seus pesadelos. 
- Está tudo bem querida - disse seu pai afagando seus cabelos. 
- Foi só um pesadelo 
Os pesadelos haviam cessado há um tempo. Mas aquela noite havia assistido ao noticiário. Diziam sobre o "assassino da represa". A menina dormiu com aquilo na cabeça. O pai deu-lhe um beijo na testa e desejou uma boa noite. Quando ele fechou aporta, a menina notou que estava com sede, muita sede, e desceu as escadas escuras para ir até a cozinha e tomar um copo d'água. Encheu o copo e quase o derrubou quando ouviu um ruído vindo de trás da porta dos fundos, onde ficava a garagem. A porta estava trancada, e mesmo com o medo que sentia, a menina decidiu descobrir o que era. Passou pela entrada do cachorro na porta. Por onde seu pastor alemão costumava entrar antes de morrer envenenado. A garagem estava escura, e ela tateou a parede até achar o interruptor. Foi quando notou que ainda estava com o copo nas mãos. O som vinha de outra porta atrás da picape de seu pai. Era lá que ficava o porão. Num impulso a menina foi até a porta, que para sua surpresa, estava destrancada. Abriu-a e desceu lentamente os degraus. Acendeu a luz e viu todo tipo de bugiganga espalhada. Sua mãe costumava guardar as peças de roupa que confeccionava por ali. Algumas delas ainda estavam lá. 
- "Por favor"- era um sussurro. 
A menina deu um passo para trás, e observou no canto do cômodo uma espécie de porta subterrânea feita de madeira, com um cadeado na ponta. Eram tacos de madeira com espaços de alguns centímetros entre eles, portanto daria pra ver o que quer que estivesse lá embaixo. A luz da garagem iluminava parte do lugar, e a garotinha pegou uma lanterna que viu no meio das bugigangas. Acendeu-a e caminhou até a porta subterrânea. 
- Oi, por favor, você me ajude - a voz vinha dali de baixo.  
Ajoelhou-se e iluminou o rosto de uma mulher por entre ovão da madeira. 
- Ah graças a Deus! Ajude-me a sair daqui antes que ele volte - a mulher implorava, com o rosto inchado, mas aparentemente magro. Mas ela podia reconhecê-la. Era a mulher que visitava frequentemente sua casa. Que brigara com seu pai e nunca mais voltara. 
- Anda me ajuda! - sussurrou. 
- Pegue as chaves! Eu já vi ela antes, é azul, grande, deve estar em algum lugar... por favor... ele vai me matar... 
A menina parecia assustada tanto quanto a mulher, mas manteve-se calma. Balançou a cabeça, lamentando por não poder ajudá-la. Jamais conseguiria. Não poderia. 
- Não me deixa aqui por favor... 
A garotinha voltou ao seu percurso rapidamente, como se estivesse fugindo de um rato que a perseguia, e parou ofegante na porta da cozinha, com o copo nas mãos. Foi quando, de repente, avistou o molho de chaves em cima do porta guardanapo. Era alto, não ia conseguir alcançar, mas precisava...não precisava? Posicionou uma cadeira bem no lugar do objeto desejado, e quando estava prestes a subir ouviu uma voz potente: 
- O que está fazendo? 
A menina deixou o copo cair no chão e começou a tremer, com medo de se virar, mas o fez, e o que encontrou não foram os olhos do pai, e sim de um predador pronto para atacar. Ela tentou dizer algo, mesmo sabendo que não conseguiria, e então sentiu as mãos do pai a sacudindo. 
- Nunca mais vá até lá ouviu? 
A garota tentou balançar a cabeça discordando, mas ele a agarrou num abraço e chorou descontroladamente. No dia seguinte, bem cedo, a menina não quis levantar da cama, era sábado, não teria que ir para o colégio. Mas olhou de sua janela a cena que acontecia no quintal. Papai estava arrastando um saco até a picape, já perto do portão. Parecia... A menina estremeceu. E chorou o resto da tarde. Chorou por não ter sua mãe de volta, chorou por sentir medo, chorou pela moça no saco, chorou pelas outras do noticiário, e chorou por seu pai ser um assassino, e por ainda amá-lo. Quando anoiteceu, saiu do quarto, e o encontrou na cozinha. Olhou para a cadeira ao lado vazia e depois para ele, lembrando-se que era ali que a mãe costumava se sentar. 
- Por que não prepara algo pra que eu possa comer? Estou trabalhando muito ultimamente... - ele olhava a pequena filha, mas seu olhar era outro... 
- Anda logo vai pra cozinha! - esbravejou. 
A menina obedeceu à ordem e pegou os ingredientes do único prato que sabia preparar, uma macarronada. Quando tudo estava quase pronto, ela ouviu por trás a voz do pai: 
- Não devia espiar o que não deve... Além da mesma curiosidade que a vaca da sua mãe tinha, espero que não cozinhe mal como ela! 
A mão da menina parou onde estava. As lágrimas desceram no seu rosto, e a imagem de sua querida mãe veio-lhe a mente. E aquela história estava errada. Ela não merecia aquilo. Nem ela nem sua mãe, nem a garota no porão. Seu amado pai era uma pessoa fora de si. Ele a amava, disso ela tinha certeza, mas amava mais a si mesmo. E ela seria a próxima a ter o fim de sua mãe. Disso estava certa. O noticiário começou e a notícia não demorou a aparecer. A garota do porão, encontrada nas montanhas. Num estalo, a menina lembrou-se de seu pastor alemão. E que agora tudo fazia sentido. Em seus incríveis e precoces sete anos, ela imaginara que um cachorro não seria envenenado sem motivo. Mas um cachorro que farejasse qualquer coisa suspeita sim, como era seu pastor alemão. Mais uma lágrima escorreu, e a menina sentiu os nós da garganta se desatando. O pai esperou mais do que queria e bateu na mesa insatisfeito. Logo a menina trouxe a macarronada e colocou diante dele, que comeu num segundo. A menina só observou... 
- Você sabe qual a sensação? Ela negou com a cabeça. 
- Por isso não posso parar... - mas não houve tempo pra ele dizer mais nada. Ele se contorceu na cadeira, caiu no chão e se arrastou até os pés da menina: 
- O que você fez?
Ela levantou-se e se afastou, com lágrimas nos olhos. 
- Por quê?
O pai começava a sentir a vida se esvair, e a menina chorava, soluçava, sentia-se culpada por lembrar-se onde ele guardava o veneno para ratos, o mesmo que provavelmente usara para eliminar o cão. Segurou o pai nos braços e esperou a morte. "Sinto muito", pensou. O homem deu o último suspiro, e ela desabou em cima dele, chorando alto, melancolicamente. Algumas horas mais tarde a menina estava na estrada só com a roupa do corpo, e sua lancheira que carregava a foto da mãe e alguns biscoitos. E apesar da culpa, se sentiu realmente livre. O que seria do seu futuro dali por diante não saberia dizer. Os primeiros raios de sol aqueceram o rosto da menina e ela sorriu, mesmo sem querer. Continuou caminhando... nunca mais olhou para trás.

FIM




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