Quem conta um conto, aumenta um ponto #5


Tragédia anunciada

Márcio Muniz


João da Silva, brasileiro do interior, homem de hábitos simples, de princípios, daqueles que acorda antes do sol para a lida diária. Lavrador de um pequeno pedaço de chão que herdou dos pais. Aos 18 anos perdeu o pai, mas ao mesmo tempo, conheceu numa festinha da igreja, Maria das Dores, uma menina de 16 anos que vestia-se como menina, em seu vestido xadrez rodado ou mesmo nas "maria chiquinhas" que ornamentavam seus cabelos. Porém o sorriso e o olhar que ela naquele domingo, insistia em ofertar a João, davam-lhe a sensação de que ela tinha muito mais idade. Parecia que o tempo dentro dela havia passado mais depressa do que com seu corpo. Todavia, o tanto que João ficara cismado com aqueles olhares, ficara também enamorado.
Ele tímido, não sabia como responder a ela que sentia o mesmo. Durante a semana, em cada pequeno intervalo que fazia durante o trabalho, era nela que ele pensava.
No domingo seguinte, seus olhos se reencontraram durante a missa, dessa vez contudo, os olhares foram retribuídos por ele, cujo coração já se encontrava laçado. João sabia muito bem como proceder, cumpriu então o papel que a ele cabia, foi até o pai dela, que tinha a fama de ser muito rígido para com as filhas e pediu autorização para corteja-la. O pai gostou da atitude do rapaz, via futuro naquilo e deu então sua bênção. João era quieto, respeitador e as vezes não entendia de onde vinha aquele fogo todo de Maria das Dores. Ele segurou as pontas, várias foram as vezes em que ele chegou em casa empapado de suor, cheio de tremores e melado por conta dos carinhos de sua namorada.
Seis meses eles namoraram, João resistiu o quanto pode mas um dia o inevitável aconteceu, Das Dores, engravidou, seu pai a colocou para fora de casa, ela já tinha então 17 anos. Nenhuma outra atitude se podia esperar por parte de João da Silva senão, assumi-la de vez e ao filho. Por ela ser menor de idade não puderam se casar, todavia, ele a levou para morar com ele. Sua mãe fora contra, dizia ela que Maria não tinha "modos" de moça direita, que era também preguiçosa e que vivia a devanear, perdia-se a folhear revistas com artistas de TV e cinema, querendo uma vida e um luxo que ali nunca lhe caberiam.
A criança nasceu, um menino grande e forte, a contragosto dele, Maria o batizou como Richard Gere, em homenagem aquele ator de "Uma linda mulher", filme que ela tanto gostava.
João trabalhava de sol a sol, a vida era dura, sua mãe adoentada faleceu um ano após o nascimento do neto. Maria das Dores reclamava sempre, dizia que não havia nascido para aquela vida, que João não tinha ambição, sonhos. Afinal, agora lhe cabiam todas as tarefas domésticas, além da de cuidar do filho. João não tinha tempo para ser romântico e nem sabia sê-lo, aquela era a vida que ele conhecia, o ideal de um homem para com sua família para ele, era trabalhar para prover-lhes o sustento.
Maria das Dores cada vez mais impaciente, menos esposa e mãe, sua cabeça mais distante e ausente. Aos cinco anos de idade, Richard ia pra escola pela primeira vez e essa ia ser mais uma tarefa que caberia a ela, leva-lo e busca-lo a pé por cerca de 1,5 km. Logo na primeira semana um homem a cavalo veio a lavoura chamar por João dizendo a ele, que sua esposa não tinha ido buscar o filho. Ele largou tudo e foi busca-lo, quando chegou em casa, nenhum sinal das roupas dela, nenhum bilhete, palavra alguma. Ela tinha partido, sem dar justificativas, sem qualquer consideração, tal qual um dono abandona um bicho de estimação em uma estrada deserta, ela os deixou para trás.
A vida continuava dura, a lida não dava tréguas, as questões práticas da sobrevivência o absorviam, João de modo pragmático não verteu lágrimas, não tinha tempo para se lamentar. Arrumou uma empregada que a custo conseguiu pagar para cuidar do menino e dos afazeres da casa e assim suas vidas prosseguiram. Richard já tinha 13 anos, tornou-se um menino calado mas de gênio difícil. João era um pai ausente das coisas do filho, sobrava-lhe carinho para com ele, mas faltava-lhe tempo e ele entendia isso como coisa normal, típico da vida que levavam. Ele precisava trabalhar, pôr de comer em casa, juntar dinheiro para poder mandar o menino pra faculdade, sonhava vê- lo doutor e esse sentimento o movia. Contudo, ele não acompanhava o crescimento do filho, suas dúvidas e angústias. Não estava lá quando ele passou a andar com uma turminha barra pesada,  não estava lá quando alguém lhe ofereceu um baseado ou depois quando lhe deram a chance de ganhar numa noite o que o pai levava seis meses para conseguir ganhar, só por transportar uma mercadoria. João não esteve presente quando o menino teve dúvidas sobre sexo, sobre que caminho seguir.
Mais a vida continuava, João por fora das coisas do filho, o filho cada vez mais perdido e desencontrado da vida do pai. Mal se viam, suas palavras mal passavam do limite dos cumprimentos, parca troca de olhares. Apesar de tudo, o filho mantinha respeito pelo pai, ainda que não concordasse em nada com a vida que levavam. Nisso, ele parecia com a mãe, sonhava em como um pássaro bater asas e ganhar o mundo e para tal, ele precisava de dinheiro. Os fretes ficaram cada vez mais frequentes, passou a praticar pequenos furtos. João nada disse quando ele apareceu em casa com um relógio novo ou com uma bicicleta da “onda”. Na verdade ele nem reparou direito, na sua cabeça talvez tenha inconscientemente imaginado que fosse de algum amigo, mas nem deu por si que não conhecia nenhum dos amigos do filho.
De repente começaram uns rumores sobre seu filho, uns assuntos que ele julgava impróprios e descabidos, mas enfim, uma pulga pousou atrás da sua orelha. João já abandonado pela mulher, começou a imaginar e se ver também falhando como pai, só não entendia o porquê. Ele trabalhava sem reclamar, sob sol ou chuva, sem escolher o que fazer ou como fazer, tudo por sua mulher, tudo por seu filho e isto não fôra o suficiente. João da Silva seguiu o filho, descobriu que ele estava usando drogas, traficando e praticando assaltos, apesar da confirmação, não disse nada, não sabia o que dizer. Foi para a birosca do Raimundo, pediu uma dose que virou numa golada rápida, pediu a segunda e desta vez, pediu para ele deixar a garrafa. Bebeu-a toda, lutando contra as lágrimas que pela primeira na vida lhe vieram aos olhos, acompanhado de um sentimento que ele nunca antes sentira. Uma sensação de incapacidade, de inutilidade que teimava em lhe bater no ombro. Foi para casa aos tropeções, chegou lá e viu o filho com a turminha na porta de casa, quis enfim tomar uma atitude, falar grosso com ele, botar aqueles desocupados para correr. O filho não aceitou ser chamado a atenção na frente dos “amigos”e reagiu às palavras do pai que lhe esbofeteou. Ato contínuo, em um perfeito comportamento de bando, os colegas do filho partiram para cima dele, o espancaram sem dó nem piedade. Ele apanhou demais, apanhou na cara que era coisa que seu pai sempre disse que não era para um homem. Caiu no chão, desistiu de lutar, foi chutado sem dó nem piedade, cuspiram sobre o corpo inerte e sujo de sangue dele que mal abria os olhos. Seu filho, bem, seu filho não disse nada, calou-se, assentiu.
Depois se afastaram deixando-o ali caído, na sarjeta, coberto de sangue, saliva e vergonha. Não entendia como a vida podia ser tão cruel para com ele. Não entendia como um homem de bem, de princípios e trabalhador pudesse ficar a mercê de um bando de vagabundos, humilhado. Ainda por cima, ver seu filho, criado com toda dificuldade e esmero, escolher um lado, o lado errado. João da Silva levantou-se a custo, doía-lhe todo o corpo. Ele entrou em casa, abriu o armário e apanhou uma coisa que há muito guardava no fundo de uma gaveta, quando se ergueu novamente pode se olhar no espelho, o olho roxo e inchado, as marcas de sangue seco em toda a face, os cabelos desgrenhados. Ele voltou para a rua, foi atrás do filho e o encontrou numa esquina dessas fumando um baseado com seus colegas. De longe ele reconheceu o líder da matilha, aquele que lhe bateu com mais crueldade, que lhe insultou das maneiras e com as palavras mais vis. Já ouvira falar dele, de sua fama, mas enquanto seus caminhos não se cruzaram, para ele tanto fazia o que se passava na vizinhança, afinal, o que importava era trabalhar, sustentar a família, viver com honra.
O bandidinho olhou aquele pedaço de carne ali em pé olhando para ele e sorriu com deboche. João tinha uma das mãos para trás do corpo, a outra na frente na barriga em uma tentativa de conter a dor que provinha dela, de suas costelas provavelmente quebradas. Ele mancava, tinha as roupas sujas de sangue e lama, era uma farrapo humano. Disposto a lhe dar outra “lição” o tal mal afamado caminhou decidido para cima de João da Silva, Richard desta vez abaixou a cabeça, não queria ver se repetir a cena que a pouco presenciara e que provavelmente o assombraria por muito tempo depois. Antes que desse o terceiro passo, João sacou revolver calibre 38 que trazia atrás dele e deu quatro tiros no peito do sujeito. Um vulto se deslocou em seguida da direção de João que sem pestanejar atirou nele também. Não queria ser outra vez surrado por um vagabundo. Entretanto, o vulto era Richard que arrependido ia na direção do pai, tencionava protegê-lo, quem sabe abraça-lo, mas tombou morto quase aos seus pés. João da Silva olhou para o corpo sem vida do filho, de novo não lhe vieram lágrimas, ele olhava para baixo mas parecia olhar para um buraco sem fundo, olhava para além de si mesmo, para um nada que tomava conta do seu ser. Ele hesitou, olhou para o céu, deu duas piscadas enquanto algumas gotas de chuva lhe molhavam o rosto. Então ele em um movimento mecânico, levou a arma até a boca e disparou a última bala que lhe restava, afinal, trabalhar para quê se não restava mais a quem sustentar, a quem dedicar o suor do seu rosto e seus dias de labuta. Viver para quê se não havia mais valores para se preservar.



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