Quem conta um conto, aumenta um ponto... #2


Segunda-feira Negra 
S.M. Oliver


 (Este conto foi publicado na Antologia Sombras e Desejos)


O primeiro dia de aula da semana seguia-se arrastado com um discurso monótono sobre as guerras mundiais. Benjamin coçou o queixo e bocejou antes de cruzar os braços em cima da mesa e apoiou a cabeça. Não estava se importando se a professora iria chamar a sua atenção ou não. Sentiu um olhar sobre ele, e apenas virou a cabeça o suficiente para seus olhos enxergarem Lia. A menina mais gata do terceiro ano. Ela sorriu, para sua surpresa. Ele correspondeu, mas seu sono foi maior e por fim enterrou a cabeça nos braços novamente.  
O sinal tocou e Lia foi a primeira a se levantar. Levou com ela sua mochila e foi até o banheiro. Lavou o rosto e retocou a maquiagem para a próxima aula. Estava pensando em Ben, o garoto que sempre dormia na aula. Ele até que era bonitinho...  
Quando acabava de se maquiar, as luzes piscaram duas vezes até se apagarem de vez. Então ouviu um som ensurdecedor vindo de fora e teve que tapar os ouvidos. Aquele não poderia ser o habitual sinal para voltarem à classe. Parecia que seus tímpanos estourariam com aquela onda sonora. Soltou um grito, e agachou-se no chão. Depois de mais alguns segundos, o barulho parou. Ela respirava ofegante, e percebeu que o som a deixara zonza. Foi se arrastando até a porta do banheiro e a abriu. Colocou o rosto para fora, só havia a luz das janelas que ainda iluminavam parcialmente o lugar e se levantou de um salto quando percebeu que não havia ninguém nos corredores. O que era extremamente estranho. Haveriam se escondido do barulho? 
- Olá? - ela chamou. - Sabem o que aconteceu?  
Mas ninguém respondeu. Ben acordou sobressaltado, e percebeu que estava sozinho na sala. Esperou os colegas voltarem, mas nada... Então decidiu sair e ver se por acaso a aula havia terminado, mas encontrou a escola completamente vazia e escura para àquela hora.  
Correu até a janela, e viu o céu estranhamente cinzento, quase negro, e ainda eram quatro da tarde. Foi até o corredor, tentando se acostumar com a falta de luz e correu até a sala do diretor, mais uma vez ninguém foi encontrado. Voltou depressa para sala, quando trombou em alguém.  
- Lia? - disse ao ajudá-la a se levantar.  
- Ben! - ela quase gritou e foi abraçá-lo. - Eu achei que todos estivessem sumidos! O que está acontecendo?  
- Eu não sei... Mas acho melhor sairmos daqui, eu te levo no meu carro.  
Ele correu até a mesa do professor e pegou uma lanterna, que os guiou até fora do colégio onde estava o carro dele, uma pick-up velha e cinza. Entraram no carro e ele girou a chave, fazendo um barulho muito alto no motor.  
- Cuidado! - alguém gritou, batendo no vidro da janela do motorista e assustando os dois. - Eles estão aqui...  
Era o professor de matemática. Parecia descontrolado.  
- Do que está falando? Entra no carro...  
- Não tem como se esconder - ele continuou com a voz insana. - Sabia que chegariam...  
Lia estava muito assustada com a atitude do professor.  
- Professor, entre no carro. - Benjamin pediu.  
- Acabou... Não podemos escapar... Não se engane Ben, nem tudo que parece é... Eles... Eles não têm rostos... Alimentam-se de você... Não olhem nos olhos...  
Nesse momento, Ben teve certeza de que o professor estava louco, mas não teve tempo para pensar. Avistou pelo espelho lateral uma enorme escuridão que se formava no horizonte, uma névoa negra, vinha em direção à estrada rapidamente. E apesar de estar assustado, não pensou duas vezes, pisou no acelerador e arrancou com o carro, fazendo os pneus cantarem na estrada, deixando a figura do homem ensandecido para trás. Pelo retrovisor assistiu o professor sendo alcançado pela estranha fumaça, e sentiu um frio na espinha.  
- Ah meu Deus, vamos morrer não vamos? - Lia abraçava seu próprio corpo.  
- Calma vai dar tudo certo - ele disse, até para convencer a si mesmo. - Moro numa fazenda a dois quilômetros daqui. Tem um velho celeiro, e uma casa embaixo dele. Lá tem bastantes suprimentos, remédios, camas, lampiões e querosene. Se tivermos que ficar escondidos até essa escuridão passar isso vai servir. Meu avô construiu na época da guerra, se caso viesse para esses lados. Acho que agora tudo faz sentido. Tipo coisa que devia acontecer sabe?  
- Não, não sei.  
Quando chegaram à fazenda, Lia segurou nas mãos de Ben e apertou com força. Ele se afastou e soltou-se, correndo em direção a casa, gritando por seus pais.  
- Ben, não! Olhe!  
Benjamin caiu para trás ao ver a nuvem espessa e negra que cobria sua casa.  
- Venha, não podemos ficar aqui, Ben!  
Lia o ajudou a levantar-se e ambos correram em direção ao celeiro. Mas ele parecia estar a quilômetros de distância. E enquanto isso, a escuridão cobria rapidamente toda a fazenda.  
Ben escancarou o portão do celeiro, e correu até a tábua de madeira que servia como porta do esconderijo subterrâneo. Conduziu Lia, quase a jogando para dentro. Soltou um gemido quando viu a fumaça negra alcançar o portão do celeiro. Então avistou a espingarda pendurada junto às ferramentas do pai, a alguns metros dele. E em tão poucos segundos tinha uma decisão a tomar. 
- Anda Ben, não!  
Com cinco passos alcançou a arma, e sentiu o vapor chegando quando finalmente se enfiou no esconderijo. Olhou uma última vez para a escuridão que se aproximava, estendeu o braço, alcançou a porta e a puxou para baixo. Mas não antes de sentir a névoa tocar sua pele, e gritou de dor assim que trancou o esconderijo por dentro.  
- Você está bem?  
- Acho que sim - disse ofegante.  
Os dois se olharam por um longo tempo, imaginando certamente, que agora só tinham um ao outro.  
Passaram os primeiros dias quase em total silêncio, ainda assustados demais para falar sobre o que havia lá fora. Não imaginavam se era um acontecimento somente na cidade ou em mais algum lugar. Por ora, estavam seguros. Havia um banheiro e a água funcionava. Os suprimentos dariam para meses. Mas ambos não cogitavam aquela possibilidade. E eles se perguntaram intimamente o que realmente estava acontecendo? Quem ou o que provocara aquela escuridão? Ben decidiu que o que quer que fosse, o enfrentaria em breve.  
Aos poucos começaram a falar, coisas fúteis e bobas, detalhes da vida de ambos, tentando esquecerem-se da escuridão. Mas mesmo assim Lia parecia muito triste, e Ben pensou que estava enlouquecendo, pois ouvia constantemente a voz de sua mãe lhe chamando. Mas algo dizia no fundo de sua mente que não era ela.  
No dia quinze abrigados ali, nada parecia fazer sentido, e eram ouvidos muitos barulhos e ruídos por todo celeiro. Os dois estavam muito assustados.  
- O querosene acabou - Ben anunciou. - Vou ter que buscar lá me cima.  
- Você não vai me deixar sozinha - ela logo falou.  
- Não vou demorar...  
Ela se levantou, dando sinais de que não iria mudar de ideia.  
- Fique atrás de mim - ele cedeu contrariado.  
Lia concordou com a cabeça, e com cuidado Ben carregou a espingarda e destrancou o esconderijo por dentro. Subiu a madeira com cuidado, e enxergou a escuridão.  
- Está escuro... Mas a névoa sumiu... - Lia observou.  
Poucos segundos depois estavam do lado de cima, impressionados com a visão ao redor. Estava escuro, mas havia claridade no céu. Era de manhã provavelmente, era como um dia de muita chuva, só que com o dobro de escuridão. O celeiro estava destruído, com apenas uma das paredes de madeiras de pé. Ao longe avistaram a casa de Ben, completamente destruída.  
- Precisamos tentar sair daqui. - disse Ben.  
- Olhe o carro.  
Ben olhou em direção onde ela apontava, e viu que seu carro estava em baixo de uma parte de madeira, provavelmente do celeiro.  
- Não podemos mais ficar aqui. Vamos embora.  
- Pra onde? Nessa escuridão? Eu estou com medo! E não vou sair da cidade sem encontrar meus pais e minha irmã.  
Ben não disse nada, apenas caminhou com cuidado até o carro, mas Lia parou de repente.  
- Lia... - Ben não havia chamado por ela... De quem seria aquela voz sombria? Ele pensou. - Lia... Estou aqui.  
- Lara? - Lia chamou desesperada.  
Ben ficou perplexo, como Lia podia pensar que aquele sussurro fantasmagórico era de sua irmãzinha?  
- Lara, onde você está?  
- Aqui...  
Ambos olharam em direção a única parede de pé do celeiro. A voz parecia vir de lá.  
- Lia, não é sua irmã.  
Mas Lia parecia não ouvir nada além daquela voz estranha, que soava estranhamente como a doce voz de sua irmãzinha aos seus ouvidos.  
Lia caminhou devagar em direção à voz, e Ben a seguiu cauteloso, sabendo que nunca poderia impedi-la.  
- Socorro...  
- Lara! - Lia saiu em disparada, e Ben tentou segurá-la pela cintura, mas ela se soltou e correu para o celeiro novamente, onde desapareceu do seu campo de visão. Benjamin ouviu algumas gargalhadas e concluiu que devia estar mesmo louco. Elas vinham de todos os lados, e ele apontava a espingarda em todas as direções, como se isso fosse fazê-las parar.  
- O que querem seus desgraçados?! - ele bradou, antes de atirar no primeiro vulto que viu. - Apareçam! - Mais um vulto, e mais um tiro.  
Benjamin recarregou a arma, e sentia o suor escorrer em seu rosto, apesar de estar muito frio.  
- O que querem? - dessa vez ele sussurrou.  
Foi quando ele finalmente viu algo se mover atrás da parede de pé. Uma sombra, um vulto, tomando uma forma estranha, indistinta. Ben teve que cerrar os olhos para assimilar o que estava vendo, e por certo acreditava estar delirando.  
- Onde está Lia? - ele perguntou à coisa que se aproximava. - Pare, ou eu atiro!  
Apesar de não poder enxergar direito o que era, o único ponto evidente eram dois círculos brilhantes no lugar onde seria a cabeça de uma pessoa normal. Então ele lembrou-se naquele momento de algo muito importante:  
"Não se engane Ben, nem tudo que parece é... Eles... Eles não têm rostos... Alimentam-se de você."  
Sem pensar duas vezes, Ben apertou o gatinho e atirou naquela coisa disforme, que caiu no mesmo instante.  
Ben correu até a coisa em que havia atirado, pronto para colocar mais uma bala dentro daquele ser negro. Seus olhos foram se acostumando à escuridão, e então ele pôde ver o que na verdade estava ali no chão.  
- Lia... - ele sussurrou com a voz embargada. - Não, não... Não!  
Ben caiu de joelhos e segurou Lia nos braços, sentindo um terrível ódio de tudo e de si mesmo. A bala acertara a barriga, e ele infelizmente a viu agonizar até a morte, em seus braços.  
"Acabou... Não podemos escapar... Não se engane...".  
Ben sentiu o ar mais frio se aproximando e só teve tempo de olhar para cima. Bem ali, a centímetros de seu rosto, os círculos brilhantes, o rosto sem forma, o mistério que ele nunca chegaria a revelar. E teve vontade de perguntar o porquê. Mas os círculos se iluminaram uma última vez e Ben sabia o que viria a seguir. Nenhuma resposta seria dada. E o fim era tão estúpido e sem sentido como o início.  
"Não olhem nos olhos...".  
De repente sua visão ficou escura... Era só escuridão... Como tudo havia começado.

FIM




13 comentários:

  1. Muito boa a narração. Envolvente e detalhista.

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  2. Gosto desse seu conto. Não sabemos o que é, mas imaginamos muitas coisas.

    bjs

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  3. Tem mais ? eu quero.
    Amei seu conto parabéns.
    beijos
    http://estudiodecriacaoblog.blogspot.com.br/

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  4. Oi. gostei bastante de seu conto, fiquei presa logo no primeiro parágrafo, espero encontrar mais pro aqui. Parabéns!

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  5. Olá,
    Parabéns pelo seu conto.
    Gostei dos detalhes e de como nos envolve na leitura.

    http://euinsisto.com.br

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  6. Olá, adorei seu conto, sua narrativa conseguiu me deixar envolvida do começo ao fim *-*

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  7. Ai que conto incrível.
    A narrativa é muito gostosa e envolvente. Parabéns!

    Beijos
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  8. Uau! Adorei o conto Sabrina. Envolvente e bem escrito. E parabéns pela publicação do conto na Antologia. Mais que merecido.
    Beijos!

    Academia Literária DF

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  9. Que conto envolvente, repleto de detalhes e que leva a imaginação longe. Curti muito! :D
    Beijos, Min - www.yasminbueno.com

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  10. Adoro contos e adorei este! Espero ler outros de sua autoria!
    Bjs

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  11. Oi, tudo bem?
    Gente, que conto mais incrível, sério, fiquei aqui assustada com o rumo que as coisas estava levando. Cadê o final feliz? kkkkk Enfim, ficou realmente muito bom, me senti envolvida com a narrativa.

    beijos :*

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